Quase cem mil metros quadrados conformam o terreno de um dos patrimônios industriais mais importantes do Brasil. Inaugurada em 1926 por um grupo canadense, a Fábrica de Cimento Portland Perus, São Paulo, foi fundamental para o crescimento da região, deixando um legado que vai muito além dos seus restos arquitetônicos.
Viabilizada pela construção da São Paulo Railway – que ainda funciona sob a égide da CPTM – a Fábrica trouxe para a, então pequena, vila centenas de trabalhadores, tanto estrangeiros que ocupariam cargos de alto escalão, quanto moradores humildes do interior que chegavam preparados para carregar os pesados sacos de cimentos. Foram muitas as vantagens e estratégias criadas para trazer os trabalhadores até o local tal qual a construção da vila operária criada ao redor da fábrica que contava com moradias dotadas de infraestrutura como água, esgoto e energia elétrica (só chegou para todo o bairro em 1953), além de assistência médica, dentista, açougue e farmácia.
Enquanto sua matéria-prima impulsionava o desenvolvimento nacional, alavancando a construção de prédios, casas e indústrias, o bairro se expandia em torno da fábrica tal qual um feudo protegido sob égide da prosperidade. Direta ou indiretamente, uma comunidade se formou por meio da fábrica, fonte não apenas do sustento econômico, mas também da geração de laços afetivos.
Em meados da década de 1950, a primeira fábrica de cimento no Brasil passou das mãos da empresa canadense para o comando do polêmico J. J. Abdalla e viu sua produção (e população) triplicar sem que houvessem melhorias nas instalações. O “tempo dos canadenses” passou a ser sinônimo de nostalgia com os trabalhadores enfrentando explorações, diminuição de salários e sucateamento da infraestrutura. A situação insustentável culminou em uma primeira greve, em 1958, que durou 46 dias e marcou o início de uma era de grande instabilidade. Nesse momento surge um dos mais importantes movimentos operários da história do Brasil, conhecido como “Movimento dos Queixadas”, título peculiar que advém da estratégia do porco selvagem de mesmo nome que, quando ameaçado, junta-se aos seus companheiros e ataca em grupo. Este movimento foi responsável pela maior greve operária do país, com duração de 7 anos, entre 1969 e 1976, que desafiou a ditadura militar e saiu vitoriosa após anos de luta ininterrupta. A intervenção do Sindicato dos Queixadas fez com que a “Perus”, como era conhecida a fábrica, permanecesse confiscada pelo Governo Federal até 1977, gesto impulsionado pelas dívidas e impostos não pagos. A fábrica foi a leilão, entretanto, foi retomada pelo grupo Abdalla que detém sua propriedade até hoje.
Após anos de resistência, os salários dos tempos da greve foram pagos, totalizando 2448 dias, e os esforços passaram para outra preocupação que assolava a população. Nos anos 1980, a luta em Perus foi travada pelo bem da saúde dos seus moradores. Cartazes fixados pelo bairro diziam “o pó de cimento esmaga a vida” marcando um movimento organizado principalmente pelas mulheres que reivindicavam a instalação de filtros nas chaminés, delineando um dos episódios mais antigos de luta ecológica que se tem notícia no Brasil.
Em 1987 a fábrica foi fechada definitivamente, mas as lutas não acabaram por aí. Em 1991, um “novo” projeto do Sindicato “da Perus”, chamado Perus — Centro de Cultura Operária, tinha como objetivo a criação de espaços para manifestação popular, capacitação sindical e profissional, promoção da mulher e do idoso, formação da juventude, museu da memória da fábrica, do trabalhador e da estrada de ferro. Também foi mencionado um centro municipal com venda direta do produtor, centro de recreação e esportes, preservação ambiental e um programa habitacional. O documento justificava a necessidade de tombamento do conjunto e sua desapropriação.
Em 1992 as edificações da fábrica e o conjunto que deu início ao bairro se tornaram parte do Patrimônio Municipal, por meio do CONPRESP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Foram preservados o conjunto de edifícios, equipamentos e instalações da área de produção da antiga fábrica e a sede do Sindicato; as residências operárias da Vila Triângulo, da Vila Fábrica e da Vila Portland e as casas da administração e assistência médica. A prefeita da época, Luiza Erundina, chegou a decretar utilidade pública de uma porção da área para a implantação de um Centro Cultural do Trabalhador. Porém, mesmo após o tombamento, a fábrica continuou nas mãos da família de J.J. Abdalla, impossibilitando qualquer ação nesse sentido.
Em 2004 o processo passou por uma revisão e o perímetro de tombamento foi reduzido, as edificações da CBCPP correspondentes ao processo de fabricação do cimento, Vila Triângulo, a Capela e o Sindicato continuaram a ser preservados, as outras vilas operárias foram demolidas.
De lá pra cá, a reivindicação dos moradores pelo centro cultural seguem vivas apesar da batalha estar cada dia mais complexa. Diferentes impasses têm surgido como os usos não-legalizados – a exemplo das partidas particulares de airsoft (disputa de tiros na qual são disparados projéteis com armas de pressão que tem causado diversas avarias na estrutura), os rumores sobre a criminalidade e os interesses do proprietário, que anos atrás sugeriu a criação de um complexo habitacional com torres que variavam de 5 a 17 andares. Somado a isso está a localização geográfica e inserção do complexo no terreno que dificulta o entendimento completo do conjunto de volumes, tornando-o uma fortaleza amuralhada esquecida pelo poder público.
A reivindicação por um espaço cultural que também possa materializar essa memória de luta tão importante para o bairro, e que serve de inspiração para as novas gerações, vai ao encontro das inúmeras iniciativas globais – cada vez mais presentes - de reuso adaptativo. A possibilidade da criação de um “SESC Pompéia” nas ruínas da primeira fábrica de cimento do Brasil alimenta o sonho das associações compostas por moradores do bairro e família dos operários. Não se pode negar que esse seria um desfecho digno para um espaço que carrega tamanha simbologia - tangível e intangível - tornando-se um bem cultural de uso público que conserva a história de uma população à margem dos discursos oficiais.